O INSTANTE SUBLIME NOS ESTILHAÇOS DE DANILO DE S’ACRE
Isaac Melo
Em “Estilhaços” (Editora Nepan, 2020), Danilo de S’Acre
apresenta-nos uma cartografia do instante. O instante é um estilhaço arrancado
dos olhos do tempo, que tudo sabe, mas nada vê. O tempo é uma categoria medida
em instantes. O instante de uma noite, o instante de um abraço, o instante de
uma vida. Sem o instante, como experenciar ou apreender o nosso lugar dentro da
existência?
Como escreve o poeta, “tem um instante sublime na suspensão
/ das nuvens apressadas”. E não seriam as “nuvens apressadas” uma metáfora
perfeita para dizer da nossa própria condição humana? Diante da eternidade não
somos mais que nuvens que passam sub-repticiamente sem deixar qualquer
vestígio; apenas um vazio sonoro que ecoa pela noite surda da eternidade:
“Dentro da noite estrelada o vazio sonoro preenche a eternidade”.
O que restou do ser humano, da realidade, da poesia, senão
estilhaços, frágeis fragmentos encerrados na ilusão de um instante. Sim, “o
instante d’água em estilhaços / d’agonia”.
Nesta humana “fantasia silenciosa intermitente”, “as coisas
dos outros é tão parecida / com a da gente”. Porque, no fundo, o poeta sabe que
não há “nada além da invisível beleza”, que se perde na fala impronunciável,
nas “palavras dissonantes” de nossos “lábios labirínticos”.
Nesta cartografia, “ao sul do silêncio”, o poeta, em seu
itinerário, caminha por sobre as “areias siderais” até alcançar “a solidão
dentro do pensamento”. E, por entre
“sombras ausentes” e “orvalho de estrelas”, depara-se com “a solidão dentro da
folha imóvel”. Que instante sublime é o do poeta diante da folha imóvel e
vazia.
A cartografia do poeta é, também, uma cartografia amazônica.
E seu “mapinguari sapecado” pode ser, ainda, entendido como a Amazônia que
queima, neste atual “incensário amazônico”. Neste sentido, o poeta, apreensivo
e reticente, diz que “a espera é longa o sono é pesadelo...”. E indaga: “haverá
amanhã ainda?”.
Em Danilo de S’Acre, a meu ver, há uma escrita caótica.
Cartática. Mimética. Minimalista, até. Uma poesia de estilhaços, diante do
“tempo inexistente”, em que a palavra se reverbera na beira do abismo, antes de
lançar-se, caótica, no instante sublime de um olhar.
1
Na água
Folha peixe ave
Brilha estrela
No reflexo elétrico
Da imensa solidão
Da noite inteira
Lúcida
16
Nunca mais
Amanhã também
Não sei
Nu
Cru e seco
Amanhecer só
Semente e flor
41
E a fruta e a lua
Coisa mais ainda
Ela debruçada líquida
Na paisagem da janela
45
Do poema que fiz
Quase nada restou:
Tirei as tripas secas e crocantes
A pele engelhada pelo tempo dispendido
As veias abertas e outras entupidas
Quanta coisa desnecessária possui um poema...
Quão grande é o corpo inerte e desejável
Nunca aprendi a dissecá-lo,
talvez seja incapaz ou apenas covardia
Não sei que tinta,
azul, vermelha ou preta...
Um poema é um laboratório labiríntico
Caminho me perco me procuro e indago:
Para atravessar o sentimento caio em armadilhas e
feitiço...
Nada restará no final do poema
Tiro e acrescento, parece em vão
Ainda não consegui o encanto:
Tirei tudo do poema e não encontrei o coração, ele
pulsa engasga regurgita
E eu bobo desfalecido desapareço
Às escuras na infância infinda
70
Silenciosos os ossos
Dormem juntos
E sonham um invólucro
Mais
Eficiente
106
Pelo abraço
O mesmo momento
Tão tarde novamente
Nunca terá o dia
Mormaço dormente
Tudo amanhã simplesmente
Pelo abraço
O mesmo instante
107
Em silêncio o sonho
transparece
Acréscimo um pesadelo
Escrito em dissoluções...
Finjo acordar no pulsar d’instante
Suporto a dor no sono
Em silêncio explícito
Um sono distante
S’Acre, Danilo de. Estilhaços. Rio Branco: Nepan, 2020.
Do Blog Alma Acreana:
https://almaacreana.blogspot.com/search/label/DANILO%20DE%20S%27ACRE
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